Uma professora guanhanense deu um emocionante depoimento ao site www.novaescola.org. Danúbia da Costa Teixeira foi a primeira de sua família a concluir o Ensino Médio e hoje é professora de Língua Portuguesa e doutoranda em linguística
Eu venho de uma família de analfabetos. Sou mulher, negra, da roça. Estudei em uma escolinha em Guanhães (MG) que não tinha cerca, banheiro ou cantina. Só salas de aula. Pela escola que você estudou, pela sua origem, pela sua cor, as pessoas têm uma expectativa muito baixa a seu respeito. Elas criam expectativas sobre seu futuro como empregada doméstica ou em um outro subemprego – porque é o que toda sua família faz.
Comecei a trabalhar como empregada doméstica aos 14 anos. Lá em casa todo mundo começou a trabalhar muito cedo. Sempre ouvi das pessoas que não adiantava a gente estudar. Quebrar essas expectativas sem dinheiro ou incentivo exige coragem e persistência. Só tem um jeito de mudar a vida de uma pessoa que nasce na minha situação: a Educação.
Estudava de manhã e trabalhava durante a tarde e noite. Com 17 anos, eu comecei a morar e trabalhar como empregada em uma casa. Trabalhava todos os dias. Não tinha sábado, não tinha domingo, não tinha feriado. Comia o que sobrava, dormia no chão. Era um trabalho que hoje seria considerado sub-humano.
Fui a primeira da minha família a concluir o Ensino Médio. Como meu emprego pagava um salário mínimo, consegui entrar na faculdade. Mas não era fácil. As pessoas para quem eu trabalhava torciam e contribuíam para que meus estudos não dessem certo. Quando eu comecei a faculdade, eles passaram a me tratar ainda pior. Se eu falasse que teria um trabalho importante na faculdade, não conseguia ir porque eles me davam alguma coisa grande para fazer. Até o último ano da faculdade, trabalhei nesse lugar. Até que, ainda naquele ano, passei no concurso estadual.
Dorinha, uma senhora que nunca tinha me visto na vida, soube por uma colega minha de faculdade que eu tinha conseguido um contrato na escola, mas que eu não tinha onde morar e estava na faculdade. Ela me ligou e falou: “eu também sou professora, trabalho nessa mesma escola que você vai trabalhar. Se você não quiser perder a oportunidade, pode vir e ficar na minha casa. Tenho dois filhos e você será tratada do mesmo jeito que trato meus filhos”. E foi, realmente, o que aconteceu. Conclui a graduação de licenciatura em Letras. Fiz especialização, mestrado – melhor fase da minha vida – e fui a primeira aluna cotista no doutorado de linguística da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Você pode”
Se eu não tivesse tido os professores que eu tive, não chegaria onde eu cheguei. Foram pessoas que, apesar de conhecerem todas as dificuldades da minha realidade, me disseram: você pode. Não importa de onde você vem.
Toda vez que você vê um aluno, veja aquele aluno com potencial para chegar em qualquer lugar – até além dos lugares que você chegou. Um talento sem um mentor, torna o caminho mais difícil. Se a família não identifica no filho um talento ou não sabe dizer o que se pode fazer com aquele talento que o aluno tem, cabe à escola fazer esse papel de mentoria. Você tem que incentivar o aluno desde cedo. “Você é ótimo em Matemática, vamos tentar uma olimpíada ou uma Engenharia?”. “Existem essas opções de financiamento. Você quer? Dá para ir?”, “Você escreve muito bem, vamos tentar Letras ou Jornalismo?”. “Você é tão comunicativo, já pensou em ir para a área do comércio?”.
Dou aulas do 6º ano até a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Tenho alunos que ganharam prêmios, olimpíadas, foram para a faculdade. Muitos dos meus alunos são destaque – e eles se destacam todos os dias pela vontade, por sair de casa, lá no meio do mato, de ônibus escolar ou a pé e por vir para a escola. São alunos que trabalham à tarde. Que tiram leite, capinam, apanham feijão e, ainda assim, não desistem. Pessoas que sabem que não importa de onde elas vêm, elas têm capacidade, elas podem chegar no mesmo lugar que todas as outras chegaram. Esses alunos, esses são os que me motivam. Não posso falar para eles “estudem”, se eu não estiver estudando. Preciso crescer porque eu preciso subsidiar o crescimento deles. Para que eles tenham oportunidades melhores, eu preciso ser uma professora melhor.
Eu não saberia viver sem aluno. Eles fazem todos os dias da minha vida mais felizes. Todos os dias.
Contra todas as expectativas, eu consegui. Depois que meus irmãos viram que era possível, eles também foram para a faculdade. Hoje, todos os três têm graduação e trabalham com Educação. Se você for esforçado, você não precisa aceitar o que as pessoas te dizem. Persistência, boa vontade e coragem. Às vezes, as oportunidades são mais difíceis. Eu percorria 550 km para fazer o mestrado. Agora eu estudo em Belo Horizonte – são 300 km. De casa, eu vou até Guanhães, que tem rodoviária, e, de lá, vou para Belo Horizonte. É puxado, mas não é impossível. Quanto mais difícil a luta, melhor a vitória.
Danúbia da Costa Teixeira é professora de Língua Portuguesa e Língua Inglesa na EE Alberto Caldeira, em Guanhães (MG). Graduada em Letras Português/Inglês pela Faculdade de Ciências e Letras do Leste Mineiro, com especialização em Mídias na Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e mestrado em Letras/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Doutoranda em Estudos Linguísticos pela UFMG e professora-autora do Time de Autores NOVA ESCOLA de Língua Portuguesa.