Em um mês, nove denúncias foram oferecidas à Justiça, duas pessoas foram presas preventivamente e nove crianças e adolescentes foram ouvidos judicialmente. Campanha contou com participação de diversas instituições, como Polícia Civil, Polícia Militar, Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Prefeituras, Conselhos Tutelares, Centros de Referência de Assistência Social, Centros de Referência Especializados de Assistência Social, escolas, igrejas e rádios comunitárias.
Com o objetivo de combater a violência sexual praticada contra crianças e adolescentes, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio da Promotoria de Justiça de Santa Maria do Suaçuí, dirigiu uma ampla campanha de conscientização da população no período de 21 de setembro a 21 de outubro.
Intitulada “Fala comigo! Todos contra a pedofilia”, a ação foi desenvolvida em parceira com o Poder Judiciário, Polícia Civil, Polícia Militar, Prefeituras, Conselhos Tutelares, Centros de Referência de Assistência Social, Centros de Referência Especializados de Assistência Social, escolas, rádios comunitárias e igrejas dos municípios de Santa Maria do Suaçuí, José Raydan e São Sebastião do Maranhão, na região do Vale do Rio Doce. A iniciativa contou também com o apoio da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais do MPMG, por meio do projeto Ministério Público Itinerante.
Conforme levantamento da Promotoria de Justiça de Santa Maria do Suaçuí, em decorrência da campanha, 19 procedimentos investigativos foram instaurados, incluindo Inquéritos Policiais e procedimentos de apuração de ato infracional. Dez deles já foram concluídos, resultando na proposição de nove denúncias à Justiça. Os trabalhos ainda estão em andamento.
Além disso, dois mandados de buscas e apreensão foram cumpridos e duas prisões preventivas, efetuadas. A Promotoria requereu o depoimento especial de 28 crianças e adolescentes, sendo que nove já foram ouvidas judicialmente, e instaurou 10 procedimentos extrajudiciais para acompanhar e proteger as vítimas.
A promotora Ana Flávia Lurian de Paiva, idealizadora da iniciativa, explicou que as especificidades dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes, associadas às características da região – marcadamente rural e patriarcal -, exigiram a realização da campanha e o envolvimento dos diversos atores sociais das localidades atendidas pela Promotoria. “Grande parte das crianças e dos adolescentes da região vive na zona rural, em uma cultura de violência naturalizada, muito marcada pelo patriarcado. Como algumas denúncias anônimas de estupro de vulneráveis, no passado, não foram para frente, criou-se uma cultura de impunidade. Foi neste cenário complexo que tivemos que atuar”, comentou.
De acordo com a promotora, o acesso às informações de abuso, na região, é bastante difícil, e ocorre, por vezes, de elas serem descobertas de forma inesperada. “Já aconteceu, por exemplo, de, durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão por crime de furto, os policiais descobrirem que o investigado morava com uma menina de 12 anos. Por conta do medo de retaliações, casos como esse não são denunciados”, explicou.
Conscientização
Para tirar os casos de violência sexual da invisibilidade e conscientizar a população sobre o problema, a Promotoria de Justiça de Santa Maria do Suaçuí mobilizou líderes religiosos, rádios, diretores de escola, autoridades, conselhos tutelares, Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) dos três municípios, reunindo-se com todos esses segmentos.
No dia do lançamento da campanha, 21 de setembro, os organizadores da campanha aproveitaram o grande fluxo de pessoas na cidade, em razão da missa de aniversário do falecimento do Cônego Lafayette da Costa Coelho, sepultado em Santa Maria do Suaçuí, para falar publicamente da iniciativa e potencializar o alcance da ação. “A missa reuniu cerca de 5 mil pessoas. Para atingir o maior público possível, pedimos espaço de fala para os líderes religiosos. Eu e a juíza de Direito Vaneska de Araújo Leite falamos sobre a campanha, que se estendeu durante o mês seguinte com várias ações de conscientização e acolhimento de crianças e adolescentes”, contou.
Em cada um dos municípios, foi realizada uma reunião entre os pais dos alunos e as autoridades da comarca. Participaram, além da promotora Ana Flávia Lurian de Paica e da juíza Vaneska de Araújo Leite, o comandante do Pelotão da Polícia Militar, tenente Pedro Augusto Bragança de Sá, e o delegado da Polícia Civil Thales Borges Muniz.
Nesses encontros, as autoridades enfatizaram que as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, incumbindo aos seus responsáveis legais o dever de cuidado e proteção. Abordaram também temas como patriarcalismo, revitimização, importância de se acreditar na palavra da vítima e como identificar indícios de que uma criança pode estar sendo vítima de violência sexual.
Foram realizadas, ainda, diversas atividades nas escolas da região, houve distribuição de panfletos e botons da campanha, passeatas, participações na programação das rádios, reunião com líderes religiosos com o objetivo de torná-los multiplicadores da campanha, palestras promovidas pelo Cras e pelo Creas, entre outras ações.
Os professores fizeram vários trabalhos em sala de aula. Os municípios de José Raydan e São Sebastião do Maranhão organizaram passeatas em que os alunos carregavam faixas e cartazes sobre a campanha. Em José Raydan, também foi organizado um evento na praça principal da cidade, com apresentações artísticas sobre o tema da campanha, preparadas pelas escolas.
Canal de denúncias
Com o objetivo de garantir a segurança dos denunciantes e o recebimento de informações suficientes para embasar as investigações, foi criado também um canal de denúncia que preservava a identidade dos informantes. Segundo Ana Flávia, apenas o delegado de Polícia e dois investigadores envolvidos na campanha tinham acesso à identidade dos denunciantes. “Divulgamos esse número em live da Câmara Municipal de Santa Maria de Suaçuí, nas redes sociais da Promotoria, das prefeituras municipais e da população, nos panfletos, nas missas e cultos. À medida que as informações chegavam, fazíamos a verificação de procedência”, explicou a promotora.
Em cada caso, a equipe de trabalho traçava a melhor estratégia de atuação para preservar a intimidade das vítimas. “Algumas crianças, em especial as vítimas de agressores próximos às famílias, temiam a reação dos pais ao tomar conhecimento dos fatos. Tinham medo de que os fatos não fossem reconhecidos como verdadeiros, que seus genitores as culpabilizassem, e, até mesmo, que isso pudesse gerar castigos físicos. Desse modo, foi necessária a articulação de mecanismos de proteção dessas crianças”, detalhou.
De acordo com a promotora, foi realizado acompanhamento desses núcleos familiares pelos órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) e ajuizadas ações pleiteando medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei Henry Borel. “Em alguns casos, notificamos os pais para comparecer à sede da Promotoria de Justiça e alertamos sobre a possibilidade de perda do poder familiar e responsabilização criminal, se fosse detectada qualquer forma de violência doméstica e familiar contra essas vítimas”.
Segundo Ana Flávia, o engajamento de todos os envolvidos na campanha foi fundamental para os resultados da iniciativa. “Os professores e diretores se mobilizaram, levando o tema da campanha para a sala de aula. Os órgãos de Assistência Social, com maior capilaridade, fizeram com que a mobilização chegasse à população rural e disponibilizaram acompanhamento psicológico prioritário às vítimas”, ressaltou.
O Poder Judiciário, por sua vez, de acordo com ela, criou pautas temáticas, conferindo a máxima urgência à designação de audiências para a colheita de depoimento especial e julgamento das ações penais que já estavam em trâmite. “Também fortalecendo a iniciativa, a Polícia Militar participou ativamente da divulgação da campanha nas escolas, creches e outros espaços de convivência, além de ter reforçado o patrulhamento na região das escolas de crianças que estavam se sentindo ameaçadas”, contou.
Outro ponto forte da ação destacado pela promotora foi o estabelecimento de instrumentos de cooperação interinstitucional entre o Ministério Público e a Polícia Civil, com base na Resolução nº 350/2020 do Conselho Nacional de Justiça. Por meio deles, as duas instituições compartilharam provas e informações, o que possibilitou uma atuação coordenada nos âmbitos cível e criminal, evitando retrabalho e garantindo mais celeridade.
Ana Flávia ainda ressaltou o caráter itinerante da campanha, com a atuação de uma psicóloga que se deslocou até as escolas das vítimas, propiciando um espaço de escuta e acolhimento. A estratégia, de acordo com a idealizadora da iniciativa, foi fundamental para atingir as crianças e os adolescentes que têm menos acesso ao Poder Público, como os que residem na zona rural e em povoados.
Abordagem psicológica
Com o apoio da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais do MPMG, por meio do projeto Ministério Público Itinerante, a psicóloga Bárbara Chaves Benjamim Rodrigues atuou durante toda a ação atendendo crianças e adolescentes em situação de violência. O trabalho teve a orientação da especialista em Psicologia e Desenvolvimento Humano Tatiane Dias Bacelar.
Bárbara promoveu nas escolas, com o apoio do Cras, do Creas e do Conselho Tutelar, diversas atividades de conscientização sobre violência sexual e ouviu 89 crianças e adolescentes, da pré-escola ao terceiro ano do ensino médio. Com o público de 10 a 17 anos, abria espaço para perguntas anônimas e as respondia. Com as crianças mais novas, trabalhava por meio de desenhos.
À medida que as denúncias de abuso chegavam à Polícia Civil e ao MPMG, os nomes das vítimas eram repassados à psicóloga, que, com a ajuda dos diretores das escolas e do Conselho Tutelar, conseguia atender esses alunos de forma particular, discreta e sigilosa. Outros estudantes passaram a procurá-la voluntariamente para relatar abusos. “Depois da escuta especializada, com foco no acolhimento, eu produzia um relatório, a vítima prestava depoimento policial e a investigação seguia. O Conselho Tutelar esteve presente em todas as visitas escolares, fornecendo o suporte necessário quando identificávamos casos graves”, explicou.
Bárbara conta que a percepção de impunidade por parte dos jovens a surpreendeu. “Muitas situações de violência relatadas eram casos antigos, que foram denunciados pelas vítimas, mas que não foram enfrentados na época. Por algum motivo, a impunidade era algo comum. E essas crianças e adolescentes vinham conversar comigo como uma última esperança”.
O desconhecimento das crianças e dos adolescentes sobre sexualidade e sobre a violência também chamou a atenção da psicóloga. “Constatei um desconhecimento básico sobre a violência, sobre as partes do corpo humano, sobre consentimento. Não há forma melhor de previr abuso do que a educação sexual e a consciência corporal. Por isso, é preciso que as instituições invistam nisso, oferecendo um preparo adequado aos profissionais que trabalharão esses temas”, alertou.
A psicóloga ainda destacou a importância de crianças e adolescentes terem pais ou cuidadores em quem possam confiar. “Quando isso não acontece, um outro adulto se tornará esse ponto de apoio, como um professor, por exemplo. Mas é muito importante que crianças e adolescentes tenham com quem se abrir”, ressalta Bárbara.
Números nacionais
Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, houve 40.659 registros de estupros de menores de 13 anos no país, o que representa 61,4% de todos os estupros registrados. Entre as vítimas, 86% eram meninas. Assim, em média, quatro meninas menos de 13 anos foram estupradas por hora no país.
O levantamento ainda revela que 72,2% dos estupros aconteceram dentro de casa; 71,5% foram praticados por familiares; e 44,4% por pais e padrastos.
O contexto da violência sexual no Brasil e a intersetorialidade no enfrentamento desse tipo de violência foram foco das discussões do Encontro Regional da Comissão da Infância, Juventude e Educação (CIJE) do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), realizado na Procuradoria-Geral de Justiça, no dia 31 de outubro. (As informações são do portal do MPMG)